APELOS DO SENSÍVEL NA CENA DA DANÇA-PERFORMANCE
Dramaturgias líquidas
INTRODUZINDO
Estar e conviver durante cinco dias com pessoas-pensantes-criadoras, pesquisadores, coreógrafos, mestres e doutores atuantes nos quatro cantos do Brasil e fora dele, foi uma experiência de retiro-distanciamento para olhar de longe o que venho pensando e realizando com a Cia Balé Baião em Itapipoca, região e estado, nisso fazer confrontos e redimensionar anseios. O exercício da “escuta atenta”, da “escrita-registro” e dos fluxos livres de diálogos informais foi determinante em meu processo de assimilação-contribuição durante esses dias. Fez-se necessário que eu muito mais me deleitasse com o acolhimento do que estava sendo dado generosamente do que me lançado a dar. Sinto-me contaminado e embriagado de questões que a partir de agora são bem mais pertinentes à minha reflexão e intervenção enquanto criador e educador de dança no contexto que conheço.
Os textos que seguem são resultados de paralelos que fiz entre o que foi conversado com as ânsias que persigo desde que venho pesquisando e sistematizando a dança desenvolvida em Itapipoca. Apresento considerações que venho escrevendo e reescrevendo como ensaio de um possível projeto de pesquisa sobre feituras de dança contemporânea com corpos de não-dançarinos, material enriquecido com as falas-presenças dos tecedores desse feliz encontro.
Retorno a Itapipoca insultado a prosseguir sem perder meus focos, porém com o anseio de me fundamentar bem mais através da leitura de livros que possam me fundamentar no que venho experimentando e registrando, jamais abrindo mão da ideia que me move a construir possibilidades do sensível: “existo, logo penso”.
Gerson Moreno, criador-intérprete, coreógrafo, pedagogo e professor de dança.
PLEITEANDO DRAMATURGIAS DO TEMPO PRESENTE
A inquietude de quem cria no decorrer da história ganha novas feições e configurações a cada crise nova vivenciada pelas pessoas-sociedades-unidades-coletivos. Atrevo-me a dizer que Criar é antes de tudo reler contextos, plastificar poéticas cotidianas, estabelecer relações diretas ou indiretas com o público que se dispõe apreciar a obra exposta, instigar reflexões à cerca do homem contemporâneo, de suas angústias e ânsias. Mas criar o quê e com que propósito? Criar sozinho ou em parceria? Criar sempre ou em períodos necessários? Criar por satisfação pessoal ou para dividir? Criar pela necessidade de legitimar pesquisas e processos ou pela espera de um aplauso final? Confesso que no momento estou muito atento a possibilidades de construção (sozinho ou coletivamente) onde seja intensa a experiência dialógica do aprender, empreender, reaprender e, sobretudo a prática generosa do acolhimento, onde posso me disponibilizar a escuta dos sussurros lúcidos e eficazes de quem chega para colaborar na gestação de minha-nossa obra. Pensar no ato criativo como pressuposto de vivencias estéticas muito mais que na produção de um resultado exigido a ser apresentado me dá condições de compor espetáculos anti-espetaculares que poderão ou não sair da sala de ensaio, mas que inevitavelmente se tornarão documentos ou registros de descobertas conjuntas, materializações de ânsias estéticas, plásticas de anseios abstratos. Independente da obra ir para o palco ela existe para nós, codificou-se no nosso pensar-fazer dança. Mais cedo ou mais tarde esse documento se expressará, mesmo que por outras vias, mesmo tendo que ser destruído para dar lugar a um outro espetáculo, a um outro documento: rotina de quem escreve e erra, papel amassado, jogado no lixo... recomeços, mas o texto é o mesmo, está na ponta do lápis.
Muito baseado em experiências de criação desenvolvidas por artistas da dança, (principalmente por coreógrafos que trabalham a partir de projetos de pesquisa onde transitam corpo, improvisação e performance) e sobretudo a partir de minha vivência enquanto criador junto a “corpos de bailarinos” e “não-bailarinos” com a Cia Balé Baião de Itapipoca, consegui em linhas gerais rascunhar um percurso sistematizado do que podemos chamar “pontuações sobre o ato de criar na dança”:
Colocar-se em estado de acolhimento-percepção-adesão a contextos distintos ou apelos instantâneos. Deixar-se afetar;
Experimentar sem grandes pretensões a partir de roteiros de vivências que poderão ser sistematizados ou aleatórios. Suscitar a sugestão voluntária a fim de proporcionar processos colaborativos, tanto no âmbito individual como no coletivo;
Organizar-desorganizar-organizar os desenhos-imagens que sintetizarão as descobertas e edificações estéticas configuradas no experimento-estudo-corpo;
Compartilhar a obra pela necessidade de estabelecer relações-afetações com públicos distintos. Desfazer-se da obra entregando-a ao outro;
Estar disponível para refazer-resignificar a obra, quando surgir necessidade de potencializar sua plástica e poesia. Receber de volta a obra criada com todos os “atravessamentos” que fizeram nascer questões de ordem crítica e nisso mapear maneiras outras de ser, estar e dialogar com o trabalho criado-recriado.
...
DRAMATURGIAS DO CORPO COMUM
O exercício da “escuta atenta” vem me possibilitando fazer paralelos entre conceitos recentes de arte contemporânea com minha prática enquanto educador que cria, artista que cria consigo mesmo, artista que cria com a Cia Balé Baião e finalmente artista que cria com pessoas que nunca criaram ou que nunca dançaram, paralelos que me trazem questões bem particulares a refletir.
Venho perseguindo a ideia de pesquisar movimento expressivo e desenvolver material coreográfico com corpos ausentes de adestramentos técnicos em dança contemporânea, especificamente com adolescentes de bairros periféricos da cidade que trazem impressos em seus corpos o futebol, a capoeira e o hip hop como práticas físicas rotineiras, operários que trabalham em empresas-fábricas acarretados de memórias corporais enfadonhas e porque não dizer “dolorosas memórias” provindas do contato repetitivo com máquinas e sapatos, e recentemente com professores do ensino regular de uma escola profissionalizante de Itapipoca, corpos até então travados pela rotina frenética de sala de aula, frustrados pelas abdicações pessoais que a vida e o mercado os obrigaram a ter em nome da educação e do serviço exclusivo, enfim, corpos inéditos no panorama dança contemporânea de Itapipoca, cidade do interior que até então conhece e reconhece apenas o que é desenvolvido coreograficamente pela Cia Balé Baião.
Me interessa enquanto criador a poesia que reside na ação e na imobilidade do corpo enquanto organicidade, corpo enquanto memória sensorial e social. Minha obra se compõe a partir de uma perspectiva de construção cênica onde seja possível a plastificação de corpos inacabados (ideia de falta, vácuo, de vazio necessário, de começos sem meios ou finais), fragilizados (pelo “deixar a desejar” em força, em tônus muscular ou resistência física. Que sejam assumidos os limites e as carências corporais do criador-intérprete como potenciais cênicos a ser utilizados) e intensos nas suas escolhas instantâneas, no ser e fazer aqui e agora pelo improviso casual ou direcionado. Que a verdade cênica seja medida nas opções de duração, tempo, espaço, peso, fluxo e força feitas pelo criador-intérprete no fazer-se cena pelo corpo.
Venho percebendo cada vez mais que a ação física por si própria está acarretada de “dramaturgias da hora”, de “poéticas súbitas” que testemunham o tempo real dos acontecimentos, nisso não se enquadra roteiros fechados com reações pré-meditadas ou previsíveis, tão pouco histórias lineares de cunho didático. Os fragmentos me interessam bem mais que as totalidades ou inteirezas das coisas. “Estar e fazer” no momento súbito é inevitavelmente compor verdades cênicas alicerçadas no “risco” e na “salvação”, na pergunta e na resposta dada no instante a se construir de “corpo presente”, em tempo real. Nesse sentido o Conflito Cênico poderá se configurar a partir de Circuitos Corporais onde contato corpo-a-corpo e corpo-espaço garantirão olhares, tatos, escutas e fragrâncias poéticas que atravessarão de distintas formas. Provocar maneiras de ver e ler o que se expõe garante a edificação de Plurais Dramaturgias no “outro atravessado”, no público-compositor-dramaturgo.
O corpo do criador não-bailarino, por não trazer máculas técnicas de “dança padrão”, consegue sob direção de um olhar-comando do dramaturgo, construir uma performance bruta, descomprometida com as “armaduras” do “belo dançarino” ou do “belo movimento” em detrimento do manifesto político, do refazer-se em cena para gerar fluxos de expressão. Interessa para o corpo dançante-performático de um “operário dançarino” o recondicionamento ou reconfiguração de sua condição de “corpo impossibilitado” para se firmar como “corpo possível”, de “corpo reprodutor” para “corpo criador-criação”, de “corpo proletariado, mão-de-obra barata” para “corpo emancipado”, autônomo, corpo pensante e pulsante de consciência-atitude transformadora. Estar em cena com esse corpo social já é a dramaturgia de um contexto concreto se materializando por si próprio. Não há necessidades de figurinos, trilha sonora, cenário e até mesmo de movimento elaborado. Basta que ele esteja e seja, que ele olhe-se e olhe para quem lhe olha, basta que ele espere às leituras de sua imobilidade despojada, basta que ele deixe que sejam vistos-devorados sua coluna curva, enrolada de tanto ficar em posições incorretas frente às máquinas, suas mãos ásperas e calejadas, resultado das repetitivas fricções, seus pés “achatados” e longos, ausentes de alongamento. Basta que ele seja o que for palpável de ser naquele espaço com aquele público.
Ver-debruçar-se desse “corpo comum” na cena-berlinda é ver-se nesse corpo que também sou eu, que sintetiza um pouco ou muito de mim, materialização das fragilidades e potências que residem no “ser comum” de um “cotidiano comum”, anti-espetacular. Identificar-me ou sentir-me parte desse “todo cênico” por me ver “apresentado” e não “representado” pelo corpo do dançarino-operário, torna “incomum” este lugar, esta habitação, estes corpos que se relacionam, nisso se instala uma dramaturgia de cunho estético-político, material experimental emergente em tempos de consumismo e globalização, válvula de escape frente a padronizações estéticas que ainda se sobrepõem e excluem artistas e obras de grandes circuitos que querem legitimar a dança como produto mercadológico, muito mais que agregar o experimental independente.
CONFLITO CÊNICO SENSORIAL
O corpo é um texto a ler-se. A dança, diferente do teatro clássico, não se faz através de textos aprendidos, de personagens que transitam dentro de uma história, de diálogos, de começos, meios e fins. Ela lida (ou deve lidar) com tecidos invisíveis que se cristalizam dentro de processos de composição de qualidades de presença do corpo, de ambiências e deslocamentos. Quando se fala em “conflito” se pensa em “diferenças”, oposições de forças, contradições ou caminhos contrários que irão se sobrepor sempre com o pretexto de deixar espaços vazios ou vácuos entre ambos. O “entre” provocado pela divergência de forças é o lugar do deleite, dos êxtases sensoriais, dos atravessamentos e reflexões, do ver-se dentro, entre ou distante dessas forças contrárias, do reencontro com substâncias essenciais do ser, invisibilidade que “deixa-se conhecer” ou revela-se no ato do sentir sentindo-se, do contemplar além do olho vendo-se e revendo-se, do tátil além do toque, tocando-se e deixando-se tocar.
Em meio à eloquentes discussões conceituais a cerca das artes no âmbito da pesquisa e produção contemporânea, permeia um “sumo” que extrapola termologias acadêmicas: a invenção do sensível enquanto obra de arte.
O que na verdade interessa é a potência poética da obra, sua capacidade de afetar e infectar, independente de ter se configurado dentro das tendências metodológicas, estéticas ou filosóficas apontadas. O conflito-poético do corpo sempre será antes de tudo o próprio corpo-sujeito-objeto. Estar e intervir no mundo é a gênese da teoria por vir. Antes das conclusões escritas e editadas que se firmem práticas de ordem individual ou coletiva. É fundamental que o corpo com suas possibilidades e capacidades se veja experimentando na ânsia de criar “arquiteturas físicas” que dialoguem com os públicos vigentes. Cada lugar vai aspirar por um corpo específico, cada corpo uma singular necessidade de dança, cada dança um registro efêmero de perguntas e respostas que simultaneamente aparecem e se desintegram no corpo-memória-sentidos, cada público o seu olhar-sedento, sua experiência particular de relação com o mundo que o cerca e consequentemente sua forma de ler e reler, de ver-se e sentir-se na obra exposta. Eis o grande apelo da contemporaneidade: acolher muito mais que negar. Romper com pré-conceitos a cerca do que pode ou do que deve ser a dança numa perspectiva contemporânea, vislumbrando sobretudo possibilidades de encontro com os plurais olhares-anseios que diversificam por sua vez os lugares a se habitar. Em foco esteja à questão: Dramaturgia a ser construída-descontruída com quem? Onde?Como? Para quê?
PÁLPEBRAS E QUEBRANTOS (Gerson Moreno)
Olho de quem me olha
Olhado-devorado
Atos-pedaços
Molha-me pálpebra
Chorosas meninas-velhas
Molhado sigo na berlinda-cena
Atravessando tecidos inquebrantáveis
Linhas-costuras em panos-trapos-pedaços
Molhado
Partido ao meio
Entre-atravessado
Imóvel fico à espera do anseio de me mover
Sigo parado, simplesmente atravessado em flechas-flecheiras
Estraçalhado em pedaços bem partidos faço-me corpo
Invento-me em presenças necessárias
Eficazes e desintegradas presenças
Refaço-me de novo em velho
Dou-me e retiro-me atirando-me no acaso
Contato em súbitos apelos do tempo real
Pelos apelos instantâneos integro-me
Pelos, jamais aparados
Cabelos, nunca cortados
Cabeça de novelos de lã
Salientes cotovelos
Fraturo-me para durar em intensidades finitas
Quebro-me sem ter pudor das pálpebras latentes
Refaço-me de corpo em anticorpo
De dança contra-dança
Desdanço
Retalho-me com emendas de memórias
Esqueço-me e peço desculpas
Lembro-me
Papel espaçoso: Desenho-me sem riscos
Pedaço de borracha: Apago-me para não deixar marcas nem histórias
Escrevo-me nova-mente em de-mentes vontades
Tesoura cega: Repico-me
Colo-me com cuspes e partituras coreográficas: grude de goma
Componho-me no aqui e agora
Assumo o drama que me persegue
Caixa embrulhada com papel espaçoso
Assumo-me dono dessa dança até que seja dada
Dou-me
Obrigado
De nada
Recolho-te em pálpebras e palmas-meninas
Bandeja na mão
Hora de juntar os cacos
....
..
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(textos produzidos-gestados do Encontro TECIDO AFETIVO, no período de 07 a 12 de Junho de 2010, Praia de Flexeiras - Trairi/CE.
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