“Um baiser pour petits-ours”. Vinha escrito no verso final da carta que recebeu naquele envelope vermelho. Olhei profundamente a grafia, me detive aos detalhes da curva de cada palavra e, dali tentei extrair à fórceps qualquer afetividade contida. Abri a carta, alisei o papel, passei-o entre as mãos, a ponta dos dedos, senti sua textura... Fechei, apertei contra o peito e senti mais uma palpitação diferente. A pus em cima da cama. Uma lágrima desceu e com ela vieram outras e outras e outras... Inevitável, pela centésima vez eu estava chorando. Chorando e soluçando. Chorando e tremendo. Mais uma leitura dessas e estaria morta. Quem terá escrito tal carta? Uma especialista em crueldades da existência? Uma besta mimada e sem alma? Uma criança sem noção das coisas da vida? Uma tarada aventureira? Uma mulher apaixonada? Sua mãe testando meu emocional?
Levanto da cama. Ainda soluço. Abro a porta do quarto num gesto quase heróico e me jogo no chão. Minhas forças são mínimas. Sinto meu sangue ralo passeando pela mulher que fui. Vou me apoiando como posso até a cozinha. Me escoro nas paredes, me arrasto no chão. Meus ossos não parecem meus, ameaçam um esfacelamento. Sinto meu próprio gosto e não é ameno. Minha saliva de repente se percebe ácida demais a ponto de derreter o que um dia chamaram “boca”. Meu maxilar travado não me permite gritar socorro. Vou serpenteando, contornando os móveis, o fogão e a frase “Um baiser pour petits-ours”. Me transformo paulatinamente numa máquina de moer. De moer a si mesma. Não consigo levantar o rosto, algo me puxa pra baixo. Digo qualquer coisa incompreensível e me penduro na porta da geladeira até conseguir abri-la, puxo uma garrafa d’água e no descontrole a bebo sem pausas, molhando o chão, molhando o resto de mim.
Estou torta no assoalho frio, meu pé direito tenta me levantar e o esquerdo tem cãibra. Tento ter pensamentos bons e em meu arsenal de auto-ajuda, lembro que sou melhor que você, que seu estado de coisas me dá preguiça e que a única coisa que presta entre nós é o sexo, mas que depois dele me sinto uma moribunda vegetando ao seu lado. Lembro ainda que você é de libra e tem a pele ruim. O mito amoroso que forjei pra mim se desfigurava no chão da cozinha. Meu francês de merda só foi capaz de compreender a frase fatal, mas de toda a carta aquilo bastava. “Um beijo pro ursinho”. Um beijo pro ursinho e as ilusões se esvaindo, Um beijo pro ursinho e a sombra de outra buceta em nossas vidas. Com a coreografia semi-ensaiada, restaurei parte da dignidade, peguei álcool, fósforo e tomei uma decisão.
*Texto nascido do exercício proposto na residêcia da Zeynep, interpretar cartas de um mesmo remetente, enviadas por anos e anos.
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