“Tem mais presença em mim o que me falta”
Manoel de Barros
Então a dança existe. A minha grande questão com ela tem a ver com o seu combustível: para que dançar? “Toda arte é completamente inútil”, rebate Oscar Wilde, e chacoalha a minha cabeça, que graças a Deus não está desconectada do resto de um corpo, m-eu. Eu sou minha? Não sei bem responder, já que o Roberto Pereira esclarece logo de cara, logo de título: “o corpo que dança conta história”. Com 20 horas de curso e alguns dias de reflexão, eu concluo que a minha dança é muito menos minha do que eu supunha.
Minha, não minha, o quanto isso realmente importa? Saber da história é entender que de forma nenhuma seria possível construir uma obra sem o peso da interpretação dos símbolos e da ação simbólica, que fazem parte da construção da cultura, e que absolutamente não se faz sozinho. Mas o ponto de reflexão está também na idéia de que é preciso valorizar quem se propõe a captar ou questionar a essência de sua época, geração, gênero, localidade e tantos outros elementos, e materializá-los em expressão artística, uma vez que a identidade “não está esperando para ser descoberta, ela está sendo gerada pelo nosso trabalho cotidiano como produtores de linguagem”, como coloca Chico Homem de Melo em seu livro Signofobia.
“Produtores de linguagem” soa tecnocrata e mora aqui uma corda bamba de um medo meu. Para que produzir mais linguagem? Se, segundo Kathryn Woodward em Identidade e Diferença, “é por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos”, eu me pergunto (e sei que muitos já fizeram a mesma pergunta) se o sentido daquilo que eu sou já não está suficientemente representado na obra de tantos outros eus e meus, famosos ou anônimos, que construíram as histórias da dança? Que caminho eu vou andar: na tentativa de criar mais uma linguagem ou perseguir as possibilidades dentro de um caminho já desbravado? Não seria os dois a mesma coisa, já que a criação de uma nova linguagem não é possível sem as referências de tantas que já existem? E mais: se é uma necessidade representar em dança as minhas questões, em que ponto dessa vontade o público entra?
Talvez na parte que se identifique, ou talvez na parte que o confronte, são lados de uma só moeda que é a dança, um tanto desvalorizada na bolsa de valores da arte. Quem discute bem esta questão é Tiago Bartolomeu Costa, no texto “[Descompêndio] O medo que temos do corpo”, no qual expõe a opinião do coreógrafo Jerome Bel, que fala em “morte do espectador”, mas diz também que “será necessário encontrar elementos de identificação que ajudem o espectador a reconhecer nos outros o seu próprio corpo”. No caso do trabalho de Bel, podemos dizer também que há uma identificação (ou confronto?) com aquilo que parece em cena a própria vida.
Há dois sentidos para a palavra appearance, como coloca o filósofo de arte Arthur C.Dantas, no seu livro Transfiguração do Lugar Comum: pode significar aparição, como uma coisa que se faz presente e como aparência, como uma coisa que parece e por parecer, essencialmente não é, ou não está. Essa ambigüidade sobe ao palco com força na obra de Jêróme Bel, como por exemplo, no filme exibido no curso em questão, The Show Must Go On, em que dezenas de não-dançarinos-profissionais estrelam o espetáculo concebido por Bel, executando o que a música pede para eles fazerem. Afinal, é uma representação da realidade ou é a própria realidade, por serem não-dançarinos-profissionais? É aparência ou aparição? E mais: não entramos aqui na discussão da dança social (aquela que nos leva muito mais ao ato pela sensação) versus dança cênica? São opostas, essas danças? É dança?
Marcelo Coelho, discutindo sobre crítica de arte, em seu livro Crítica Cultural: Teoria e Prática, coloca que é típico da crítica conservadora “considerar essencial o que é acessório, o que é mutável em determinado gênero artístico” e exemplifica, dentro das artes plásticas, com a frase comum “Isso não é pintura”, quando “provavelmente, a obra inovadora estará justamente em busca da ‘essência’ da pintura, propondo uma definição de pintura que não leve em conta características acessórias, típicas de uma época”. O show de Jérôme Bel, que precisa continuar, se aplica perfeitamente à idéia de Coelho, porque trata, entre outras coisas, de algo essencial na dança: a influência da música em como se está movimentando.
Esta discussão vai de encontro com as questões que acercam meu trabalho atual. “Corpomancia” é um jogo de dança, com dados, tabuleiro, cartas e jogadores, criado para as pessoas experimentarem a dança através de elementos dos estudos de Rudolf Laban e a partir disso, poderem se relacionar de um jeito diferente com esse gênero da arte - mais íntimo, pelo menos. Acontece que, junto com outras dançarinas (bailarinas, intérpretes-criadoras, que seja), fizemos um coletivo e criamos um jogo-espetáculo. Isto quer dizer que jogamos o Corpomancia ao vivo. Como se sabe, em jogos, contamos com o elemento sorte, que hora está do nosso lado, hora não. Acredito que esta instabilidade do improviso em dança deste jogo levanta a questão se o que estamos fazendo é realmente “dança” (cênica), se é mesmo arte.
Acredito que a obra de Jerome Bel seja um argumento de autoridade para a elaboração de espetáculos de dança que se dirigem ao público de forma não convencional; que a própria pergunta “para que” ou “para quem” dançar é em si um tema que pode ser transformado em arte, sem a obrigação de resposta. A questão pode ser: como você vai perguntar? A perseguição da representação daquilo que somos, independentemente da pessoa “eu”, “nós”, “eles”..., é que promove a evolução da arte – não necessariamente sua melhora. Em O Livro Sobre Nada, do poeta Manoel de Barros, podemos ver representada esta relação de deslocamento constante: “Do lugar onde estou, já fui embora”. Para onde?
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