Parece paradoxal que um espetáculo intitulado "Essence"* defina-se com "uma dupla camada: uma pele que reveste um segundo corpo". Afinal, há pelo menos um século, desde que Freud revelou que aquilo que nos constitui são as paixões das nossas misteriosas profundezas psicológicas, aprendemos que a essência está no interior e não na superfície.
Em “Essence”, a Focus Cia. de Dança perturba o entendimento que tradicionalmente temos sobre a construção de nós mesmo. Com a agudeza de uma sensibilidade sempre estreitamente conectada às questões contemporâneas, a coreografia de Alex Neoral desloca o sujeito do centro de si para a relação com o outro.
A essência como superfície deixa então de ser um paradoxo, pois é através desta que nos abrimos ao mundo e as interações com a figura do outro moldam e vêm nos moldar. A pele são os objetos e as pessoas que a todo o tempo revestem, preenchem, deslocam, impedem, permitem, modificam o segundo corpo, de um sujeito que se reconhece como essencialmente relacional.
A composição coreográfica (para não abandonar os paradoxos) é elaborada nos movimentos e simples na plasticidade da cena. O jogo com as sombras retorna em mais um espetáculo para evidenciar o corpo e suas relações. E a luz ganha um papel especial: aquela que normalmente é um elemento exterior à cena e tem como função criar visibilidades aparece em “Essence” como camada, constituindo a composição com a propriedade inusitada de tocar o corpo.
A beleza revela-se na simplicidade estética da cena, mas também na complexidade e na qualidade das formas, dos gestos e, sobretudo, dos contatos que os intérpretes executam. Mais uma vez, a Focus leva ao público uma obra de natureza singular pela sensibilidade e plasticidade com que trata de um tema tão contemporâneo e humano.
*O espetáculo foi apresentado no Correios em Movimento de 2010.
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