IMAGENS DE SEREIA E PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES | corpos de Oxum na cidade de Salvador? *

De que natureza era o canto das sereias? Em que consistia a sua falha? Porque é que essa falha o tornava tão poderoso? Há os que sempre responderam: era um canto inumano – sem dúvida um ruído natural (haverá outros?), mas à margem da natureza, de qualquer modo estranho ao homem, muito abaixo e despertando nele esse prazer extremo de cair que lhe é impossível satisfazer nas condições normais da vida. (M. Blanchot) Os espaços públicos de Salvador, Bahia, contam com profusão de imagens de Sereia por meio de desenhos, pinturas e esculturas (em várias escalas, materiais, suportes) é um acontecimento evidente, desde as três esculturas vistas no percurso rápido entre as praias centrais do litoral norte da cidade a partir de Ondina, Rio Vermelho, Amaralina, Itapuã; extensivo à influência dessas figuras e grafismos nos muros, marcas de produtos de design, espaços culturais e comerciais da cidade. Também se verifica essa recorrência do símbolo em locais mais ou menos afastados da orla. Tal característica da cidade pode ser realçada como um plano de consistência estética pelo qual passa a produção de significados e de encontros na sociedade, no ambiente, agenciamentos de enunciação ou produção de subjetividades. Independente das imagens se tratarem de manifestações espontâneas, artísticas, subversivas ou subvencionadas, elas são impostas e intensificadas pela repetição e “empilhamento”. Procuramos a chance de um olhar reflexivo e para redimensionar significados, perceber dinâmicas e desdobramentos potenciais da relação dessas imagens nos espaços da cidade de Salvador; observaríamos isso com uma forma de pensamento em que os corpos, a cidade e o ambiente estejam imbricados, em processo.
(Brito e Ahmed: 2008) A imagem de sereia possui uma carga aparentemente fácil de aspectos relacionais, como a presença da tradição clássica latina e grega, o imaginário medieval dos navegantes, o sincretismo com as tradições afro brasileiras, os orixás ‘mãe das águas’, Oxum, Iemanjá, Nanã, presenças potentes no cotidiano dos corpos (e) da cidade, das celebrações das festas de largo do dia dois de fevereiro, como registradas na pesquisa abissal da fotógrafa
Isabel Gouvêa. Perguntar quais os devires implicados numa flagrante repetição do motivo sereia, que multiplicidade de forças entoaria a plasticidade social com a presença de tais obras | imagens ou eventos, significa problematizar os nexos de sua relação com as experiências corporais do ambiente, é buscar um plano que recorte a constituição de conceitos que se reorganizam ao habitar essa realidade. Sereia traduz liame, limite, corda e também significa miragem, no alemão
fata morgana, ilusão de óptica, refração total da luz na atmosfera. A sereia como um ser insólito, quimera, ilusão, canto hipnótico, abre passagem ao lugar da poética. Maurice Blanchot observa no
Livro por vir (O Canto das sereias: o encontro com o imaginário) que Ulisses, na
Odisséia, ao burlar o canto das sereias instaura o lugar da narrativa (fala| ordem) contra o da poesia (canto| caos). Em Salvador, a presença constante de obras escultóricas e intervenções que repetem essa imagem nos espaços de circulação como se fossem ‘miragens’ capturadas, cotidianamente, estaria relacionada à ação de burlar e ou de pactuar com esse canto caótico e irracional? Colocar questões a partir de corpos e figuras de sereias materializadas na paisagem com tinta, bronze ou concreto, pode ser colaborar com esse acontecimento estético desdobrado nas esculturas, grafittis, marcas, símbolos, adereços, festas de largo (rua), colaborar como uma forma de experimentação de qualidades das atitudes que circulam com essas imagens,
performar (SETENTA: 2008) com o corpo e o espaço desenhos de processos de subjetivação, de semiotização. Compreendendo por produção de subjetividade toda produção de sentido de eficácia semiótica, processos de semiotização (Guattari:1992). Suely Rolnik destaca em Cartografias do desejo, a delicada transição que o homem vem efetuando desde o século XX, sua relação com o caos, que não se dá apenas no plano da consciência, e sim no plano do próprio modo de subjetivação. Uma subjetividade intrinsecamente processual. (Rolnik:1996) Para ela, libertar a subjetividade da tutela do terror em relação ao outro e ao caos passaria pela conquista da necessidade de experimentá-los. Nos espaços públicos da cidade de Salvador, o ambiente plural, a intensa troca de semioses com outros corposcidades, onde a presença do “outro” também é uma experiência cotidiana, as imagens de sereia podem ser pensadas enquanto cruzamento de linhas e procedimentos do imaginário social, de signos de assimilação do caos, da sobreposição de inúmeras versões das suas poéticas próprias da cidade e a produção de uma subjetividade que consente na inflexão do vocabulário para a experiência do ambiente. * Esse texto é parte da investigação para a criação cênica [em processo] :: IBIRI | o que desenrolou de repente, de Marcia Sobral :: CITAÇÕES Blanchot, Maurice. O encontro com o imaginário. In: O Livro por vir. Tradução de Maria Regina Louro, Portugal: Relógio D’água, s/d. Britto, Fabiana Dultra e Alejandro Ahmed. Entrevista: Debates em estética urbana 1 – 27 a 31 de outubro 2008. disponível em: http://www.corpocidade.dan.ufba.br/dobra/04_03_entrevista.htm Guattari, Félix. Caosmose: Um novo paradigma estético. Rio de Janeiro: 34, 1992 Rolnik, Suely e Félix Guattari. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1996 Setenta, Jussara. Fazer-Dizer Performativo em Dança: corpo; cidade; performatividade :Artigo/Ensaio : Debates em estética Urbana 5 - 27 a 31 de outubro de 2008. disponível em http://www.corpocidade.dan.ufba.br/dobra/05_02_artigo2.htm :: SEREIAS

.Chafariz de Yemanjá (Concreto revestido com fibra de vidro, Altura = 4,00m), Autor: Bel Borba, 1990, SSA/BA :: Praça Cel. Valdir Aguiar - Itaigara

Sereia de Itapuã / Iemanjá (Aço Carbono e Granito, altura = 3,34m com pedestal) - Autor: Mário Cravo Jr, 1958, SSA/BA :: Av. Octávio Mangabeira - Itapuã

Sereia da Colônia de pescadores, Artista = Manuel Bonfim, 1970, Altura = 3,74m, Largo do Santana – Rio Vermelho, local que concentra a festa do dia dois de fevereiro e o cortejo de embarcações.

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