Dança contemporânea e pirâmide invertida - O que o lead não diz

(Texto produzido para debate do projeto Inferência, do coreógrafo Ney Moraes, que teve estreia em Agosto de 2006, cirsulando depois pela Caravana Funarte/Petrobras, ene abril e maio de 2007, nas cidades do Rio de Janeiro, Belo Horizonte e Ipatinga)

Pirâmide invertida é um jargão jornalístico para identificar um formato de textos em que a parte mais importante da notícia ou da informação é colocada logo no primeiro parágrafo. A pirâmide da informação seria invertida porque, ao contrário das pirâmides físicas, o mais importante estaria no alto, ou seja no início do texto. O formato tornou-se quase uma unanimidade na imprensa porque poupa tempo do leitor e permite que o texto seja cortado para adequar-se ao espaço editorial disponível, sem comprometer a qualidade da notícia ou da informação.
No curso de jornalismo, aprendemos que, em tese, dá para resolver tudo no lead, o esquema-chave de uma notícia, a ponta desta pirâmide. Diz-se o que, quando, onde, como, por que, etc e tal em ordem direta, sinteticamente, e a notícia está dada. É pirâmide invertida clara, objetiva, sintética. Do essencial, no começo, ao que seja, em tese, secundário, lá no fim do texto.
Do ápice à base, no corpo dessa notícia, a objetividade manda. Importam os fatos, os dados, a eficiência da narrativa. O mais importante vem antes, o detalhe (nesse caso, tido como secundário), depois. E, mais, as possibilidades de fruição e de observações sobre tal assunto, pauta ou tema, seguem mais abaixo, mais abaixo, mais abaixo, lá na base da matéria.
Depois de assistir a Inferência, ficaria o desafio: diz do que se trata a demonstração cênica no lead... Não dá, né?!
O que ocorre, portanto, quando tem-se que falar de cultura, arte e criação, que fogem ao esquema às vezes rígido das fórmulas de redação? Desinverte-se a pirâmide. E abre-se espaço para nos aventurarmos pelo que o lead, tão em tese eficiente e bem resolvido, esconde.
Para falar de dança contemporânea, por exemplo, que é o que nos reúne aqui, depois desta delicada, bela e vigorosa demonstração cênica, temos que ousar outros movimentos de texto, exigir outras articulações de pensamento – e que eles tenham a mesma agilidade, dinâmica e fluência que as recém-vistas nos corpos de Mariana, Evandro e Bea Saretta.
Então, surge um primeiro paralelo possível: enquanto a dança contemporânea experimenta e se desconstrói sistematicamente, o jornalismo repete fórmulas, reproduz alguns "pré conceitos". É recorrente ouvirmos do senso comum nas mesas de bar que dança contemporânea é chata, cheia daqueles movimentos espasmódicos, etc e tal... Os movimentos espasmódicos, pelo jeito, desorientam até as idéias de quem pensa assim.
É reducionista esta "opinião-espasmo", esta visão de espetáculo, e as devidas interpretações derivadas dela, boa parte assimiladas e reproduzidas pela imprensa, nos cadernos de variedades, nas seções específicas de muitas revistas.
Essa redução pode ser conferida na repetição de termos, no esvaziamento do texto, na redundância dos clichês na hora de formular uma reportagem, relato, entrevista ou nota sobre o gênero. Esse sim parece ser um espasmo de pensamento, não um raciocínio mínimo exigido de quem queira anotar, registrar, analisar ou criticar a produção cultural.
Jornalistas e criadores precisam acertar o passo. Nas redações, sempre tememos ter que produzir textos sobre arte ou dança contemporâneas. Diz-se que o discurso de seus criadores é hermético e viajando. Claro, às vezes dá para desconfiar de tantas elucubrações e rebuscos. Mas, e se o onipotente escrevedor de textos tentasse dialogar mais com seu interlocutor? Afinal, ele é o meio, não a mensagem. Há que se ter um compromisso com as fontes; precisa saber transmitir as idéias do encenador/coreógrafo/artista para um público às vezes não iniciado, mas carente disso – que quer e espera quem alguém o introduza aos universos da criação.
Nessa interlocução, nessa mediação, descobrir-se-ia, por exemplo, que a repetição de partituras corporais, tentando usar termos mais próximos do universo coreográfico, é uma das chaves desse novo modo de fazer dança. Que a desconstrução dos gestos é outro vértice desse fazer artístico. E que, afinal, ficar encenando O Lago dos Cisnes ou Gisele ad eternum é um saco! Mas, nada contra sapatilha e tutu: o clássico também é um viés do bailado e pode virar recurso.
E contar a história, precisa? Pra dança contemporânea, não necessariamente. Afinal, linearidade não é fundamental para tais espetáculos, performances ou demonstrações cênicas. E também não existe uma narrativa fechada, afinal, vivemos na era da pós-modernidade, da fragmentação dos conceitos e das pluralidade estáticas, não é mesmo?! Daí, cabe o espectador, leitor, público, fazer a sua própria construção de conceitos, idéias ou "mensagem".
Mas, pobres repetidores, muitas vezes nós, jornalistas, insistimos na mesma dança. Por isso, acredito que, muitas vezes, o lead esconde o que o linóleo revela: movimentos previsíveis são enfadonhos e não conquistam novos públicos. Notícia sem apelo, sem formato que instigue, não contribui para renovar público do fazer artístico. O texto jornalístico pode e deve fazer articulações de corpos e idéias, conectar informações e estabelecer paralelos.
O que se experimenta aqui em Caxias, neste trabalho de Ney Moraes visto há pouco, por exemplo, é fruto de um gesto artístico do porte do movimento renovador, ou pensante, igual ao da cena contemporânea do Rio, São Paulo ou Bélgica, sei lá. E será que os caxienses estão bem informados disso? Acredito que o chamado "grande público", não.
A tarefa de fazer estas conexões, criar um pas-de-deux entre os produtores de arte e os consumidores desta produção é do jornalista, é da imprensa. Estamos fazendo isso? Em parte sim, em parte, não.
Como proceder, então?
. Saber o que está acontecendo é fundamental, circular no meio, perguntar
. Romper com a cultura do release
. Saber assistir a um ensaio
. Contextualizar
. Registrar historicamente os fatos, fazer paralelos
. Intermediar a relação entre o artista e o público
E, no corpo do jornal?
. Tirar do caderno cultural o caráter de apêndice, de corpo separado do todo
. Usar recursos gráficos, redesenhar a página – reinverter a pirâmide, lembram? – , provocar o olho do leitor, conquistá-lo para um assunto que ele não domina especificamente
. Tornar as matérias um pouco menos descartáveis, fazer com que elas possam virar leitura mais aprofundada, sugerir novas leituras, outras perspectivas para o raciocínio, e, talvez, o comportamento do público em potencial para a arte
Penso que a crítica jornalística tem uma contribuição fundamental para a freqüentação: ela intermédia, situa, convida, sugere, delineia, aponta, revela, e registra o que está acontecendo no aqui e agora da cada comunidade cultural. Numa visão multidisciplinar, pode-se pensar num texto jornalístico, de crítica, opinião ou reportagem, como um apontamento do fazer cultural do homem de um determinado tempo, num determinado lugar, sob contexto específico.
Por isso, há que se ter um compromisso ético com o fazer artístico, respeito e sensibilidade suficientes para promover diálogos, articular conexões, experimentar novas formas para o fazer jornalístico. Sabe-se, há muito, que somos, da imprensa, apontados como o quarto poder. Isso pode ser usado a favor e/ou contra muita coisa.
Acredito que, se o lead não diz muita coisa, pode passar a revelar mais: Caxias do Sul tem uma história importante na dança contemporânea brasileira, tem uma companhia que ainda se mantém – e poderia produzir mais – , tem bailarinos e coreógrafos como Ney Moraes e sua pesquisa body motion. Enfim, tem nomes, potencialidade e capacidade inventiva o suficiente para conquistar prêmios montagens como este da Funarte/Petrobrás. Resta-nos fugir da área restrita da pirâmide invertida para ampliar os vértices desse desenho.
E, então, vamos dançar?

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