Epistemologia do Sul: Ecologia dos Saberes na Red Sudamericana de Danza, por Roberta Ramos

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Epistemologia é, a grosso modo, a teoria do conhecimento ou filosofia do conhecimento, o ramo filosófico que se ocupa de pensar os problemas que dizem respeito ao conhecimento (seus métodos, sua organização, sua procedência e sua relação com uma realidade histórica, sua validade, seus limites, etc.). A partir disso, posso adiantar que o que Boaventura chama de
Epistemologia do Sul visa à recuperação dos saberes e práticas dos grupos sociais que, devido ao capitalismo e aos processos coloniais, foram histórica e sociologicamente colocados na posição de serem apenas objetos ou matéria-prima dos saberes dominantes (epistemologia do Norte), considerados durante séculos e séculos como os únicos válidos. Trata-se, portanto, mais de um conjunto de epistemologias do que uma única epistemologia. Uma diferença básica da epistemologia do Sul em relação à do Norte é a inclusão do máximo de experiências de conhecimentos do mundo (incluindo, depois de reconfiguradas, as próprias experiências de conhecimento do Norte). Não se trata, portanto, de fortalecer o Sul numa postura combativa ao Norte; muito pelo contrário, trata-se de subverter modos de entendimento do mundo em que está implícita uma lógica binária, combativa, intolerante e com pretensões de universalidade. Há claras convergências desse entendimento epistemológico e político com a visão de outros autores, como a do martinicano Édouard Glissant que se refere à necessidade, no nosso tempo, de uma espécie de “
mudança de imaginário” (em que a idéia de um “universal generalizante” não é mais o que impera, e sim a idéia de um caos-mundo), com várias implicações, como a questão da identidade nacional tratada de formas mais tolerantes. Ele se refere, ainda, a uma
Poética da relação (que podemos ampliar para uma política da relação), que compreende o outro como inferência, como uma presença implícita de nossas práticas, nossas ações, etc. É pressuposto da poética da relação uma concepção de
identidade relação, que implica um encontro com o outro sem perigo de diluição. Relacionado com esta questão, lembro que, no primeiro dia, Soledad Giannett (Buenos Aires) dizia que “ser membro da rede não implica homogeneidade, nem que participamos da mesma maneira”. Um dos conceitos centrais da epistemologia do Sul como proposta por Boaventura é a Ecologia de Saberes. Boaventura explica que “como cada saber só existe dentro de uma pluralidade de saberes, nenhum deles pode compreender-se a si próprio sem se referir aos outros saberes”. Diz ainda: “Os limites e as possibilidades de cada saber residem, assim, em última instância, na existência de outros saberes e, por isso, só podem ser explorados e valorizados na comparação com outros saberes.” A dificuldade da comparação dá-se por causa da assimetria entre os saberes, ou o que Boaventura chama de diferença epistemológica. Existem, segundo ele, duas formas de viver ou acionar essa assimetria: 1. maximizá-la, levando ao máximo a ignorância a respeito de outros saberes, de modo a praticamente declarar a sua inexistência (fascismo epistemológico) – modo que tem predominado nas epistemologias hegemônicas da modernidade ocidental (ou seja, do que ele nomeia epistemologia do Norte); 2. ou todos os saberes reconhecerem a assimetria e fazerem dela o motor da comparação com outros saberes – a este segundo modo é que o autor chama de ecologia dos saberes, que vem a ser um dos conceitos fundamentais da epistemologia do Sul. A ecologia de saberes, por sua vez, se depara com dois problemas: a) como comparar saberes, dada a diferença epistemológica – a
tradução (sentido específico, mais ou menos através de procedimentos de busca de proporção e correspondência que permitam aproximações, e isto inevitavelmente feito de modo recíproco, nenhum saber, portanto, ocupando o lugar de saber dominante; b) como criar o conjunto de saberes que participa de um dado exercício de ecologia de saberes já que a pluralidade de saberes é infinita – a
artesania das práticas – partir do princípio de que o lugar de discussão dos saberes não seja um lugar exclusivo dos saberes, por exemplo, universidades ou centros de investigação. Como defende Boaventura, “O lugar de enunciação da ecologia de saberes são todos os lugares onde o saber é convocado a converter-se em experiência transformadora” (Santos). A partir dessas questões, podemos pensar agora que a Red Sudamericana de Danza pode (e arrisco dizer que deve) configurar-se como um espaço imprescindível para promovermos uma ecologia dos saberes produzidos no domínio da dança. Poderíamos até falar numa “
epistemologia em rede” – que tenha conceitos como a ecologia dos saberes e a poética da relação como pressupostos. Colocar em rede estudos de diferentes realidades, memórias, realidades artísticas, é promover a construção inacabada e inacabável (nisto a imprevisibilidade ganha um lugar importante) de criação de metáforas e epistemologias que podem, juntas, concorrer para uma melhor compreensão de determinados fenômenos e, ainda, para a aposta de uma melhor realidade. Por fim, gostaria contar que Boaventura usa a metáfora da aposta de Pascal (pautada na racionalidade e na razoabilidade da crença), como o que nos impulsiona a trabalharmos árduo tendo como base a incerteza das possibilidades de transformação: “(…) a questão que nos confronta pode ser formulada assim: que razões nos podem levar a lutar por uma tal possibilidade, correndo riscos certos para obter um ganho tão incerto? Sugiro que a resposta seja a aposta, como única alternativa tanto às teses do fim da história como às teses do determinismo vulgar. A aposta é a metáfora da construção precária, mas minimamente credível, da possibilidade de um mundo melhor, ou seja, a possibilidade de emancipação social, sem a qual a rejeição da injustiça do mundo actual e o inconformismo perante ela não fazem sentido. A aposta é a metáfora da transformação social num mundo em que as razões e visões negativas (o que se rejeita) são muito mais convincentes do que as razões positivas (a identificação do que se quer e como lá chegar).” Boaventura de Souza Santos Bibliografia: GLISSANT, Edouard. Caribbean discourse. Selected essays. Virginia: University Press of Virginia, 1992. SANTOS, Boaventura Sousa. A filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal.
In
Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43 Dois sites de interesse: Sobre Boaventura: http://www.ces.uc.pt/bss/pt/index.htm Sobre Glissant: http://www.edouardglissant.com/

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