Diogenes e todos os outros
Por Elisabete Lucas
in A Pintura de Aristides Meneses
2005
Diogenes de Sinope foi um filósofo que os historiadores supõem ter nascido cerca de 400 anos antes de Cristo. Existindo muito poucos registos históricos sobre a sua vida, a sua história é composta de episódios avulso que contribuem para a imagem de excêntrico e marginal, de quem vivia à parte por escolha própria. Considerado a maior voz da escola cínica, com uma visão da vida que se opunha às convenções e regras sociais que considerava hipócritas e rejeitando os bens materiais que considerava não só desnecessários como mesmo perniciosos, diz-se que habitou num barril, durante o período que permaneceu em Atenas. Uma das suas actividades parece ter sido andar pela rua com uma lanterna acesa, em pleno dia, sempre à procura de um homem honesto. Morreu sem o encontrar. Considerado iludido, sábio, louco ou sátiro, é assim que surge frequentemente na pintura de Aristides Meneses.
Embora afirme que a sua pintura resulta de imagens do subconsciente, Aristides Meneses criou um mundo imaginário habitado por personagens, alguns dos quais permanentes, sugerindo uma linha condutora. Trata-se assim de um mundo real-imaginário, a que o pintor chamou Arisia, logo em 1979, quando da sua primeira exposição. O facto é que os personagens colaboram com o espectador na elaboração do enredo e são veículo da cumplicidade emocional gerada ou alterada pelos quadros. E interagem uns com os outros num mundo realmente habitado por todos.
Diogenes surge com muita frequência em 1984. Por exemplo, “Diogenes no deserto com os seus fantasmas” é um trabalho em que o filósofo aparece como figura focal, sem a sua mítica lanterna mas sim com um cajado, curvado sob o peso das suas emoções, rodeado por três gigantes, irreais, provavelmente os fantasmas a que se refere o título.
Mais uma vez aparece solitário em “Diogenes no deserto”, ou em desespero como em “Diogenes à chuva” e “Diogenes quase a desistir”. Reaparece em 2003 no quadro “A nau” agora com a sua lanterna acesa em pleno dia. Este trabalho, que prende o olhar, mostra três personagens aparentemente auto-iludidos sobre a realidade. Além de Diogenes, de luz acesa durante o dia, a imagem inclui o barqueiro que rema em terra e a jovem que passeia num barco parado. Em 2004 Diogenes surge em “Luta interior”, um quadro que regista o conflito de duas emoções simultâneas, tema querido ao pintor, em luta pelo domínio da mente humana. Surge também, agora como observador e em posição marginal, em “Ajuda-me pai” (2004).
Diogenes foi inspirado numa figura real mas outros personagens parecem ser mais imaginários. Os cabeças de ovo, personagens claramente antropomórficos com a cabeça em forma de casca de ovo, geralmente quebrada e vazia, sempre com um machado ou lança na mão, surgiram pela primeira vez em 1980 em “Primeira aparição do cabeça de ovo ainda disfarçado”. E estão presentes em “Invenção da vida” (1983), “Diogenes no deserto com os seus fantasmas” (1984) ou “Multiplicação da personalidade provocada pelo aparecimento de um peixe encarnado” (1984). Curiosamente os cabeça de ovo de Aristides Meneses nunca estão a fazer nada, parecendo apenas testemunhas passivas de todas as cenas.
A folha em decomposição, que surge por exemplo em “Um anjo acaba de morrer” (1981), “Multiplicação da personalidade provocada pelo aparecimento de um peixe encarnado” (1984) e se torna monumental em “Gabriel logo após a mensagem” (2004), é uma folha real que o pintor encontrou, assim como a pinta, e que conservou por muitos anos. Outras figuras que decorrem do real são os personagens esguios que aparecem no primeiro quadro, “Criança sem culpa admirando o túmulo do mundo morto” (1979), que constituem uma reprodução de três esculturas em madeira executadas por si e inspiradas nas esculturas etruscas que vira nas suas viagens do ano anterior. Também as rochas, geralmente elementos da paisagem, se tornam dotadas de emoções como em “Rocha perfeitamente normal com um profundo desgosto” (1984) ou “Rocha a ganhar vida na praia encantada” (1983). Esta última é uma rocha real da praia de Porto Covo, onde o pintor tem ido inúmeras vezes ao longo dos anos.
De realçar ainda os personagens que parecem ter levado mais de vinte anos a ganhar identidade própria, impossíveis de definir mas claramente antropomórficos. Trata-se de seres geralmente monocromáticos, altamente texturados em penas ou pelagem, quase sempre sem face e raramente com olhos. Surgem como personagens secundários em “Primeira aparição do cabeça de ovo ainda disfarçado” (1980) mas em 2003, com “A família original”, assumem o controlo do espaço e das imagens. Podem ser vistos particularmente expressivos em “E depois foi-se embora” (2003), “A morte Prematura” (2004) ou “Casal improvável” (2005).
Muito recentes são as famílias de pedras planas, cristalinas, que começam por aparecer em “O pai e a mãe zangados na praia” (2003) e depois se multiplicam em “Levitação original” (2004) ou “Aprendendo a levitar” (2005).
E, embora um dos primeiros anjos de Aristides Meneses tenha morrido em 1981 em “Um anjo acaba de morrer”, os anjos da guarda surgem novamente como mensageiros ou protectores em diversas obras recentes. Aristides Meneses explica que os anjos se materializam numa explosão de fotões e se desintegram numa explosão de anti fotões, mas que continuam a existir para todos os outros personagens da sua obra.